domingo, 28 de abril de 2013

Balada das damas dos tempos idos

hæc interpretatio est in honorem carissimi semperque mei Maximiliani Wallenstein confecta

Diz-me então: onde ou em que terra
está Flora, a bela Romana,
Alcibíada, e Thaís
a sua prima materna?
onde está Eco, que respondia ao ruído
vindo do rio ou da lagoa
com sua beleza bem mais do que humana?
Onde estão as neves de antanho!

Onde está agora a sábia Heloísa
por quem deu em castrado e depois em monge
Pedro Abelardo em São Dinis?
O seu amor lucrou-lhe isso.
E já que toco no assunto, que é feito da rainha
que mandou que pegassem em Buridan
e o atirassem num saco ao Sena?
Onde estão as neves de antanho!

A rainha Branca flor-de-lis
que cantava com voz de sereia;
a Bertha de pé grande; Beatriz; Allys;
a Herembourges que mandava em Maine,
e a Joana, a boa lorena,
que os Ingleses queimaram em Rouen;
onde estão elas, Virgem Soberana?
Onde estão as neves de antanho!

Príncipe, este semana não me perguntes
onde estão elas, nem este ano;
Ficai com este refrão somente:
Onde estão as neves de antanho?

François Villon. Tradução minha.


Dictes moy où, n’en quel pays,
Est Flora, la belle Romaine;
Archipiada, ne Thaïs,
Qui fut sa cousine germaine;
Echo, parlant quand bruyt on maine
Dessus rivière ou sus estan,
Qui beauté eut trop plus qu’humaine?
Mais où sont les neiges d’antan!

Où est la très sage Heloïs,
Pour qui fut chastré et puis moyne
Pierre Esbaillart à Sainct-Denys?
Pour son amour eut cest essoyne.
Semblablement, où est la royne
Qui commanda que Buridan
Fust jetté en ung sac en Seine?
Mais où sont les neiges d’antan!

La royne Blanche comme ung lys,
Qui chantoit à voix de sereine;
Berthe au grand pied, Bietris, Allys;
Harembourges, qui tint le Mayne,
Et Jehanne, la bonne Lorraine,
Qu’Anglois bruslèrent à Rouen;
Où sont-ilz, Vierge souveraine?…
Mais où sont les neiges d’antan!

Prince, n’enquerrez de sepmaine
Où elles sont, ne de cest an,
Qu’à ce refrain ne vous remaine:
Mais où sont les neiges d’antan?

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Poema de um livro destruído [1]

A memória longínqua de uma pátria
Eterna mas perdida e não sabemos
Se é passado ou futuro onde a perdemos

Sophia

sábado, 20 de abril de 2013

Novidades Editoriais Classica Digitalia

(informação recebida pela Origem da Comédia)
O Conselho Editorial dos Classica Digitalia – braço editorial do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da UC – tem o gosto de anunciar duas novas publicações, de parceria com a Imprensa da Universidade de Coimbra, a Câmara Municipal do Porto e o Centro de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro. 

Todos os volumes dos Classica Digitalia são editados em formato tradicional de papel e também na biblioteca digital. O eBook correspondente (cujo endereço direto é dado nesta mensagem) encontra-se disponível em acesso livre. O preço indicado diz respeito ao volume impresso. 

NOVIDADES EDITORAIS 

Série “Humanitas Supplementum” (Estudos)
- Francisco de Oliveira, José Luís Brandão, Vasco Gil Mantas & Rosa Sanz Serrano (coords.), A queda de Roma e o alvorecer da Europa (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, Classica Digitalia, 2012). 252 p. 
PVP: 29 € / Estudantes: 23 € [capa dura] 

Série “Varia” (Estudos) 
- António Andrade, João Torrão, Jorge Costa & Júlio Costa (coords.), Humanismo, diáspora e ciência (séculos XVI e XVII): estudos, catálogo, exposição (Porto e Aveiro, Câmara Municipal do Porto/Universidade de Aveiro, 2013) 483 p. 
PVP: 30 € / Estudantes: 24 € [a cores]

quarta-feira, 17 de abril de 2013

[C3|2 #2] Ciclo Clássicos no Cinema: 'Le Mépris/O Desprezo', de Jean-Luc Godard (1963)

Depois de termos percorrido o Mediterrâneo com Manoel de Oliveira, convidamos agora os nossos leitores a acompanharem-nos às filmagens de uma peculiar adaptação da Odisseia. O segundo filme do nosso ciclo é O Desprezo, de Jean-Luc Godard, realizador da nouvelle vague por demais célebre. Com Brigitte Bardot e Michel Picolli, trata-se de uma das obras mais conhecidas de JLG. A acção começa com a contratação de Paul, escritor, para corrigir o argumento de uma adaptação cinematográfica da Odisseia, a cargo de um respeitado realizador europeu: Fritz Lang interpretado por — Fritz Lang. A abordagem de Lang não é apreciada pelo produtor americano do filme, exasperado pela forma que este vai assumindo (reflectindo, em boa medida, as tensões que JLG teve, na vida real, com o produtor, também americano, de Le Mépris). Paul é contratado precisamente para resolver a situação, mas quando assume este trabalho a sua relação com a mulher, Camille, começa a deteriorar-se acentuadamente (o que evoca a desintegração da relação entre JLG e Anna Karina). O filme é entrecortado por reflexões várias sobre os gregos, Dante, Hölderlin e Brecht, ao mesmo tempo que a própria acção se desenvolve como glosa subtil à Odisseia. A fama da obra é bem merecida e vamos tentar entrar um pouco mais no seu mistério no final da sessão, em conjunto. Queremos mais gente na sala que pretendentes no palácio de Ulisses. Prometemos: there will be blood!


O DESPREZO, de Jean-Luc Godard
apresentado por Osvaldo Silvestre
com Ricardo Pereira e João Diogo Loureiro no debate final.

23 de Abril, 21h15
Aqui Base Tango,
Rua Venâncio Rodrigues 8, Coimbra

domingo, 14 de abril de 2013

Acervo de Textos Mediævais

Encontrar textos mediævais latinos é sempre um problema. O omnipresente thelatinlibrary.org, apesar de ter uma secção dita "Christian" e outra "Medieval", está longe de suprir todas as necessidades, a bibliotheca Augustana acusa muita coisa que depois não possui ou apenas parcialmente; o mesmo com outros. O caso torna-se mais sério quando nos apercebemos que nem sequer os gigantes do Neo-Platonismo latino e do Occidente Mediæval tem edições facilmente acessíveis online. Foi precisamente em busca da brilhante e bizarra obra de rhetórica de Marciano Capella, As Bodas de Mercúrio e Philologia que me passaram, quase em segredo, o presente site: monumenta.ch. É bem verdade que eu não sou nenhum mediævalista nem conheço os cantos à casa, e poderá dar-se que quem de saber já há muito estivesse a par, mas não posso deixar de recomendar a todos um site onde podemos encontrar obras completas do acima-referido Marciano Capella, do brilhante arquitecto da Renascença Carolíngia, Alcuino, Gregório Turonense, Lactâncio, Paulo Diácono, κτλ — a lista é verdadeiramente impressionante, e isto mesmo sem entrar nos colossos como St. Agostinho, S. Jerónimo, S. Thomás de Aquino, Isidoro de Sevilha — todos eles pesquisáveis e indexáveis por palavras. Não conterá tudo, por certo; e em certos pontos ficará mesmo atrás de alguns dos outros sites mencionados. É contudo inegavelmente um excelente acréscimo aos já-presentes recursos.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

[C3|2 #1] O Cartaz

desenhado por Luísa Beato* e Nuno Campos: os oraviva!

*(a quem já devemos, agradecidos, os cartazes das Tertúlias Pré-Socráticas e uma ajuda na concepção do próprio logotipo da Origem)

Bohemia Docta - Dicionários Greco-Latinos.

A República Checa, a Bohemia Docta do Renascimento, pátria dos dois Johannes de tradições díspares (Comenius e Hus), continua a dar cartas, desta vez por mão dum dos mais entusiasmantes sites de tempos recentes no campo da aproveitação dos recursos digitais para as Clássicas, o aparentemente modesto Lexica Latina et Græca. Quem já o tentou sabe da dificuldade em encontrar dicionários para as línguas antigas, a saber Latim-Latim, Latim-Grego, etc, ou quando estão disponíveis não são digitalmente pesquisáveis, tornando qualquer procura tarefa infernal. O presente site não é absolutamente completo, e apercebemo-mos imediatamente de vários em falta (o Inglês-Latim de Riddle vem à mente), e há também casos onde a carência de obras de referência estava já supridas por outros sites (como o óptimo dicionário Inglês-Grego de Woodhouse). Mas ainda assim a presença de colossos como o Lexicon Totius Latinitatis do Forcellini, o Wagner, e os vários dicionários etymológicos não permitem que deixemos de considerar este site uma verdadeira gemma.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Porquê os Clássicos



Para A. H.
1

no livro quarto da Guerra do Peloponeso
Tucídides conta a história da sua expedição fracassada

entre longos discursos de comandantes
batalhas cercos pestes
densa rede de intrigas
esforços diplomáticos
este episódio é uma agulha de pinheiro
na floresta

a colónia ateniense de Anfípolis
caiu nas mãos de Brásidas
porque Tucídides tardou com o auxílio

por isto pagou à sua cidade
com o exílio perpétuo

os exilados de todos os tempos
conhecem bem este preço


2

os generais das últimas guerras
se lhes acontece caso parecido
gemem de joelhos diante dos descendentes
apregoam o seu heroísmo
e inocência

culpam subordinados
colegas invejosos
ventos adversos

Tucídides diz apenas
que tinha sete navios
que era inverno
e que foi rápido a navegar


3

se o tema da arte
for um jarro quebrado
uma pequena alma quebrada
cheia de pena de si própria

o que ficará depois de nós
será como o choro de namorados
num pequeno hotel sujo
quando o papel de parede madruga


Zbigniew Herbert
tradução de Izabela Stapor, José Pedro Moreira e Tatiana Faia
ítaca 3, Lisboa, 2012

Ver e descarregar os poemas de Herbert traduzidos na ítaca aqui.


quarta-feira, 10 de abril de 2013

[C3|2 #1] Ciclo Clássicos no Cinema: 'Um Filme Falado', de Manoel de Oliveira (2003)

Depois da actividade no ano passado em Lisboa e Coimbra, a Origem da Comédia repete este ano o seu ciclo de cinema de tema clássico, agora entre Coimbra e Porto, ao longo das próximas três semanas. Começamos com Um Filme Falado (2003), de Manoel de Oliveira, uma reflexão do mestre duriense sobre a Europa: as suas raízes & crises. Uma mãe, professora de História na Universidade de Lisboa, segue com a sua filha pequena num cruzeiro rumo a Bombaim, onde se encontrará com o marido. No caminho, vão parando nalguns dos locais mais icónicos da geografia civilizacional do nosso continente. No restaurante do navio, o capitão polaco-americano, uma ex-modelo italiana, uma empresária francesa de sucesso e uma conhecida cantora grega conversam sobre as suas vidas e o passado & o futuro da Europa. Sobre o filme escreveu Bénard da Costa um belo texto (atenção: o quinto e último parágrafo contém spoilers). À boleia da obra de Oliveira, conversaremos um pouco sobre o que vale a Grécia ainda para nós hoje e até onde a Europa se pode definir em função do que dela herdou. Contamos convosco! 


UM FILME FALADO, de Manoel de Oliveira
apresentado por Paulo Cunha
com Maria do Céu Fialho e Miguel Monteiro no debate final.
(evento no Facebook)

16 de Abril, 21h15
Aqui Base Tango,
Rua Venâncio Rodrigues 8, Coimbra

sábado, 6 de abril de 2013

Comentário a 'A Terceira Miséria' de Hélia Correia


O único livro até à data que li da Hélia Correia, A Terceira Miséria (Relógio d'Água 2012) acho que quer ser uma análise una cum grito lancinante de dor sobre a Grécia actual e antiga, a poesia, e essas coisas. Com isso em vista a nossa poetisa conjura Hölderlin e Nietzsche para que, sendo como são poetas dos rios santos, desaguem nela Terceira Profetisa (um pouco como o 'Screvo meu livro). Isto porque toda a gente sabe que um livro de poesia a sério tem que falar de poetas. Portanto um livro de poesia que fala sobre poetas que falaram de poetas tem a vida feita. O único problema é que a Grécia de Hélia Correia se resume aos clichés das colunas corínthias, (mas será a minha Grécia diferente? takes one to know one): porque a Grécia dela é a de Winckelmann, a Grécia dela é “bondosa” [21], é algo anestesiado, que existiu para que a Hélia pudesse agora ter saudades dela. A visão excessivamente simplista deste livro, onde a questão do Hölderlin Wozu Dichter in dürftiger Zeit [Para quê poetas em tempos indigentes] (citada n vezes) é entendida à base de lágrimas devidas à “arrogância / pela qual o ocidente se perdeu” [25].

Ora a prepotência com que este livro nos dá lições de moral e incentivos ao pranto é quase pornográfica. A Grécia nunca foi apenas as colunas, nunca foi apenas o brilho do Sol do templo de Apolo que bate nas praias de Tróia. Falem-me em arrogância e eu lembro-me de Athenas, lembro-me da Sicília, lembro-me dos pactos traidores de Delos. Falam-me de bondade? Dificilmente me vem à mente algum grego que eu tivesse facilidade em caracterizar como “bom”: As cintilas divinas de Socrátês são arrogantes; Antigónê é dinamite, augustamente cega. Mas é esta visão passada a lixívia que fica bem passar de Héllas, é certamente mais agradável que encarar o abysmo nos olhos. O problema é que só dois mil anos mais tarde é que nos vamos apercebendo que Platão nunca fez mais nada que troçar de nós: mas merecemo-lo, pois quando ele nos diz que depois de sairmos da caverna acabaremos por nos habituar à luminosidade a ponto de conseguirmos olhar directamente para o Sol, não houve ninguém que o denunciasse? Quem se habitua à luz do sol na íris? O claro e distinto λόγος da Grécia não é algo bonito: é algo que cega e é cruel.

Aiskhylos sabia disso. Hölderlin sabia isso, sabia disso e sabia da crueldade de Zeus (“in den Abgrund habst du den heilgen Vater einst verwiesen”). E também Nietzsche sabia, Nietzsche de quem a Hélia Correia se escapole desviando a atenção para o nazismo [20; 22] e recusando-se a afrontá-lo (ou seja, escolhe o alvo mais fácil fugindo do arauto, ao qual não dedica mais que quatro versos [18]). É cobardia, cobardia porém compreensível: lendo-o somos confrontados com uma Grécia que é mais terrível que a pólis domesticada [33] e encontramos outra de terrível magnanimidade, mais violentamente justa que os tyranos de Píndaro, mais por vezes obscura que a noite do mundo na qual Hölderlin dizia habitar. São coros e choros, imagino porém eu que ela esteja consciente do passo em falso: pois um verso dá o mote, uma “meia linha” como ela diz [1], mas o resto entenebrece. E qual é o resto?

Aber sie sind, sagst du, wie des Weingotts heilige Priester,
Welche von Lande zu Land zogen in heiliger Nacht.

A noite é santa. Como dizia o centauro do Pasolini, tudo é santo, Hélia. Tu que citas com louvor Péricles que dizia “Não lutamos a mando de ninguém” [8], lembra-te de que imitar os antigos não é fazer o que eles faziam mas agir como eles. Não lutemos a mando de ninguém, nem sequer da Grécia; tu própria deves ter percebido disso quando falaste da Grécia que hoje é (e louvada sejas por tomares uma atitute antagónica à de muitos classicistas): ora a Grécia Antiga é inservível àquela que hoje é, e isso vale para cada uma das misérias do espírito do mundo; cada uma dessas misérias, acertaste, é uma "colecção dos feitos / e defeitos humanos, um início". As trevas e a miséria que hoje há são outras sempre, mas até as trevas são santas, até as nossas trevas são santas. 

Dito isto, sinceramente entrego os parabéns & χάριν pelo leitura concedida. Mesmo depois destas palavras, quero dizer que o livro recompensa a leitura: são, aliás, em muitos passos, verdadeiramente-belos. Se assim não fosse, se assim não julgasse, não teria perdido o meu tempo a escrever sobre eles. Mas é precisamente trabalho assim que é mais interessante afrontar: trabalho que se respeita e no qual se reconhece um opositor à altura. Nesse sentido a Hélia Correia, o que ela representa (uma versão Primavéra Árabe da Sophia + Maria Helena da Rocha Pereira), embora sendo um inimigo, é quem faz com que escrever isto valha a pena.
Para onde olharemos? Para quem?
Certo é que Atenas se mantém oculta
E de algum modo intacta, por debaixo
Do alcatrão, do ferro retorcido.
Certo é que nunca ressuscitará
Visto que nada ressuscita.

Hélia Correia. A Terceira Miséria [30]. Relógio d'Água (2012)
Sobre a praia já faltam muitos corpos,
substituídos por quantos
hoje vejo viajando para um fim
a que regressam como se fosse ao início:
a pedra rolará até ao
dia em que não será preciso
empurrá-la de novo encosta acima


Nas madrugadas de segunda-feira
tinhas de regressar não sabíamos bem
a que fracção do tempo porque tudo
se sobrepunha
e éramos forçados a deter
o instante não por ser
belo, apenas por ser água
onde nunca ninguém duas vezes entraria

Gastão CruzFogo [18; 21]. A&A (2013)