sexta-feira, 14 de maio de 2010

Soph. Ant. 354-356 - I


καὶ φθέγμα καὶ ἀνεμόεν
φρόνημα καὶ ἀστυνόμους
ὀργὰς ἐδιδάξατο

Assim começa a terceira estrofe (segunda, do ponto de vista técnico: a anterior é uma antístrofe) do primeiro canto (gosto muito do nome songs que se encontra em certos textos ingleses para designar os estásimos e creio só haver vantagens em o importar: mais lírico e mais próximo, retira esoterismo às clássicas e lembra a natureza musical do texto, mesmo se, em abono da verdade, tenho de admitir que introduz alguma confusão, pois que o párodo, a bem dizer, não deixa também de ser um canto) da Antígona de Sófocles, a famosa Ode ao Homem (vv.332-375). Na tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, a tradução standard, editada pela Gulbenkian (utilizo, porém, a edição do FESTEA, aqueles livrinhos a5 simpáticos, de capa branca, distribuídos com as representações do Thíasos, o grupo de teatro clássico da FLUC), lê-se:
A fala e o alado pensamento,
as normas que regulam as cidades
sozinho aprendeu
Rocha Pereira ignora por completo ὀργὰς, impulsos, que subsome no adjectivo que, no grego, qualifica o nome: ἀστυνόμους, composto que reúne ἄστυ, cidade, e νόμος, termo problemático, polissémico, que poderíamos arriscar traduzir aqui por lei (donde palavras como autónomo, aquele que se dá as suas leis). Não me recordo já de como, na recentíssima tradução feita por Marta Várzeas para o TNSJ, para a encenação da peça por Nuno Carinhas, este passo era vertido, e, como dizia Wittgenstein, sobre o que não podemos falar, melhor é que guardemos silêncio. Tenho porém comigo a tradução de Fernando Melro, editada na série de clássicos da Inquérito, ainda menos exacta (e em prosa), donde desapareceu também o ὀργὰς:
Ele conhece a palavra, o pensamento alado, os costumes urbanos
(Apenas para que se entenda melhor esta tradução, diga-se que νόμος, um dos significados mais comuns que tem e que há pouco, por conveniência, omiti, é precisamente o de costume). Das que conheço, só a tradução publicada pela Verbo, no âmbito da mítica série dos Livros RTP, da autoria de António Manuel Couto Viana (que nem tenho a certeza que tenha traduzido directamente do original), não escamoteia o termo grego:
o homem que, por si próprio, aprendeu a falar e tem pensamentos rápidos como o vento, e criou em si um carácter que regula a vida em sociedade
ὀργὰς aparece-nos aqui como carácter, o que não é uma tradução totalmente desacertada, mesmo se a carácter corresponde mais o grego ἦθος. Se formos ao dicionário (o Middle Liddell, conhecido dos estudantes de Clássicas), encontramos como significados para ὀργὰς impulso natural, propensão, temperamento, disposição, natureza. Hölderlin, porém, na sua famosa recriação poética (aqui o termo de Frederico Lourenço é apropriado), escreve assim estes versos:
Und die Red' und den luftigen
Gedanken und städtebeherrschenden Stolz
Hat erlernet er
algo como:
E o Discurso e os aéreos
Pensamentos e o Orgulho de governar cidades
Ele aprendeu
(aéreos não deve aqui ser lido no sentido pejorativo que, em combinação com pensamentos, tende a ter na nossa língua; com aéreos quis apenas manter-me o mais próximo possível do étimo do adjectivo alemão, luftigen, que vem de Luft, «ar»). A tradução de ὀργὰς por Stolz, «orgulho», é ilustrativa da peculariedade da versão de Hölderlin, que dialoga reciprocamente com o original de Sófocles, apurando-o e aparando-o (nos dois sentidos deste verbo). Hölderlin não se contenta em traduzir ὀργὰς por Trieb, «impulso», «ímpeto», a tradução costumeira no alemão: ele interroga esse temperamento (Stimmung, para usar o termo heideggeriano) para o definir, aperta-o — espremo-o, poderíamos dizer — até à depuração (como para se fazer um perfume é preciso triturar os botões das flores como uvas no lagar), que é aqui uma concretização. Hölderlin afia a palavra como a faca, ele que apontou o lado mortífero do discurso entre os gregos (Hipólito, lembrava, morre directamente por causa das palavras do pai: a palavra é uma arma, cf. Neil Gaiman, Sandman #4, o duelo entre Dream e Choronzon), quer extrair a sua verdade.

Ora qual a natureza do impulso, ὀργή, que guia o homem (beherrschenden, em städtebeherrschenden, contém Herr, 'senhor'; uma tradução mais apropriada do verbo seria não tanto 'governar' mas 'dominar', enfatizando o lado masculino do poder) na condução da cidade? Hölderlin responde: o orgulho. O homem tem na cidade, politicamente compreendida, na πόλις, a тιμή (a honra que lhe é devida) máxima de ser Homem. O Homem é ζῷον πολιτικόν (bicho político, na célebre definição de Aristóteles, Pol. 1253a): é na comunidade que se faz humano («A πόλις é a mestra do Homem», Simónides, fr. 90 West). A πόλις suprema é a cidade do último Homem (não confundir com a figura do mesmo nome no Zaratustra de Nietzsche): a perfeição das estruturas políticas (aqui no sentido mais lato do termo, o grego) corresponde ao grau final de humanização do Homem. Num regime injusto, nem todos os homens podem ser bons, e o mal, mesmo se pequeno a princípio, tem a rapidez dos coelhos a reproduzir-se e do bambu a crescer; um regime justo com homens maus, por sua vez, não se aguenta, porque os prejudica.

Se o Homem não pertence fundamentalmente à Natureza (verdade que atinge no mito do Génesis a sua formulação arquetípica máxima) — poder-se-ia dizer da relação Homem-Natura o que dizem os cristãos sobre a sua relação com o mundo: estamos no mundo mas não somos do mundo, adaptando: estamos na Natureza, mas não somos da Natureza, ou se calhar seria mais justo dizer o inverso, mas também mais trágico, porque situação irreversível, ontologicamente mais violenta, presos num sítio não naturalmente (literalmente, aqui, o advérbio) nosso e todavia impedidos de sair — ele tem portanto de arranjar o seu habitat, de o construir: é a πόλις, o espaço que cria para si. A linguagem da πόλις é, de facto, a do fabrico: Creonte, que tudo define em função da cidade («não teria por amigo próprio um varão que quisesse mal à nossa terra» [187-8], trad.: MHRP), fala explicitamente em «fazer amigos» (τοὺς φίλους ποιούμεθα) [190]. Verum quia factum, afirmava Vico, «verdadeiro porque feito». A πόλις é a realidade humana por excelência, a sua maior criação, obra colectiva, no duplo sentido de ser, como dizia Lincoln, for e by (era em Atenas sob Péricles que Sófocles pensava quando escreveu esta Ode) the people.

A πόλις é o espaço que o Homem recortou no real para si, o seu τέμενος (o espaço delimitado e consagrado a um deus, para o seu templo). A Natureza é-lhe contrária, como vimos, mas ele triunfou sobre ela, como canta o coro: navega o mar, esventra a terra pelo seu alimento, captura as aves, doma o cavalo, caça a besta dos bosques e até das doenças vai começando a saber escapar. Afirma-se então como humano, numa tríplice vertente: poeta (φθέγμα, som da voz/Rede, discurso), filósofo (φρόνημα/Gedanken, pensamentos) e, em último lugar, legislador (ἀστυνόμους ὀργὰς/städtebeherrschenden Stolz, orgulho de governar cidades). Faz parte da natureza intrínseca do Homem, do seu «princípio de crescimento» (φύσις), esta sua ὀργή (impulso, ímpeto). Ele cresce precisamente na medida em que cumpre com este princípio, como acima vimos. A legislação é uma maneira de potenciação do humano, de afirmação do que é dele.

[a continuar]

imagem: Antígona e Creonte, desenho de Jean Cocteau.

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